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Enxurrada

Era então uma mendiga e impressionava muito! Algo em seu porte desafiava o raciocínio, levando a imaginação a delirar procurando respostas.

De cabelos muito claros, louros, olhos azuis, magra, mas sem aparentar desnutrição, apesar da mendicância. Usava saia azul e blusa vermelha, ambas muito desbotadas, que expunham incrível sensação de limpeza. O nariz bem desenhado tinha certo ar de altivez, como se algo neste mundo lhe pertencesse por direito. Talvez apenas a vida, e nem mesmo disso ela tomara posse, mais preocupada em demarcar seu território em uma esquina movimentada.

Parecia esperar que algo acontecesse, demonstrando preocupação enquanto olhava a sarjeta. O que seria? Era de fato intrigante e parei, a prestar atenção nesta figura que, aos olhos incautos, nada revelava.

De repente, uma fina enxurrada começou a escorrer aos seus pés, vinda de algum quintal ou piscina, ou mesmo de algum prédio próximo que passava pela faxina diária. Ela então se apressou a tirar roupas da sacola que jazia encostada ao poste, e sem a menor cerimônia agachou e começou a lavá-las, aproveitando a oportunidade que as circunstâncias lhe deram.

Imaginem, em uma esquina movimentada da cidade de São Paulo, como se fosse dela!

Por algum motivo a água deixou de escorrer, mas já a roupa estava ensaboada. Então ela se pôs a ler uma folha de jornal que trazia dobrada entre seus pertences. O papel já estava amarelado e as bordas carcomidas pelo tempo. Colocou-se como estátua a vigiar sua roupa, dedicando-se à leitura, interessadíssima na notícia já tantas vezes lida. Não se importava com a edição muito atrasada, nem com os textos escritos nela. O mundo e a vida, para ela, têm um sabor atemporal e incerto, mas busca certezas em coisas tão básicas que até arrepia. Terá encontrado?

Magicamente a enxurrada começa a escorrer do outro lado da rua. Toma então os trapos com cuidado e atravessa, procurando um local onde a água empoçasse um pouco para facilitar o trabalho.

Fiquei realmente tocada com esta figura que faz questão de estar limpa e, em condições subumanas, consegue ser criativa, mesmo que de forma pouco higiênica. Que paradoxo!

O que terá acontecido com esta que se acotovela entre tantos e tantos desvalidos pela sorte? De onde terá vindo e por quê? Quem serão seus pais e filhos? Teria ela amado e sido amada? Seria a sobra de algo que morreu? Se tivesse tido uma chance, antes de perder as referências, tudo seria diferente!

Cessa a enxurrada e o trabalho chegou ao fim. Improvisar um varal é fácil para ela, que não reconhece mais a propriedade e nem se dá conta de que invade os limites de alguém. Adentra o jardim do pequeno hotel da esquina e expõe a roupa ao sol, contente, mostrando ao mundo que a vida continua de qualquer forma, com ou sem abrigo, apesar dos perigos, aquém do abandono, além do suportável, num canto imprevisível deste mundão sem fim.

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